quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016


Artigo publicado originalmente no Portal TEOLOGIA HOJE

A DESCONSTRUÇÃO DA VERDADE ÉTICA

Por Rodrigo Walicoski Carvalho

Este artigo visa demonstrar que o projeto da pós-modernidade de desconstruir e desfragmentar o conceito judaico-cristão de verdade descaracteriza e desqualifica a Ética Cristã em particular e a Ética em geral. Deste modo, o pensamento pós-moderno traz grandes desafios para a sustentação do discurso moderno de uma Ética universal, absoluta e transcendente.

Palavras chaves: verdade, ética, ética cristã, moderno, pós moderno

Atualmente, crescem em grande escala os desafios que permeiam os cidadãos, e em particular os cristãos, que buscam um padrão ético para seu comportamento. Essa dificuldade é devida, principalmente, as mudanças de mentalidade característica de uma época de profundas transformações. O pós-modernismo é conhecido por questionar, desconstruir e desfragmentar praticamente todos os padrões e conceitos tão enraizados na cultura cristã do Ocidente. Depois do projeto iluminista, a ciência moderna deu-nos possibi­lidades que agravaram antigos problemas éticos e introduziram novas perple­xidades. Deste modo, muitos temas éticos ganharam destaque no cotidiano das pessoas resultado justamente destas mudanças culturais que se apresentam nos tempos em que vivemos. O aborto, a ideologia de gênero, a eutanásia, a bioética, dentre outros, são exemplos de assuntos que precisam de respostas de uma Ética em geral e de uma Ética Cristã em particular, pois fazem parte do dia a dia de cidadãos que buscam repostas para um padrão ético de comportamento.

1.    Definições e conceituações

Ética é uma palavra grega que vem do substantivo êthos que significa costume ou hábito. Logo, podemos definir ética como a ciência que estuda os costumes, os hábitos, a conduta ou o comportamento do ser humano na sociedade em geral. Em outras palavras é a “ciência normativa do agir do ser humano em vista do seu fim último”. Para ser normativa, a ética precisa de padrões e referenciais claros e bem fundamentados. É amplamente aceito por historiadores, filósofos e cientistas sociais que as normativas que orientam a ética ocidental foram extraídas das Escrituras Sagradas. É por isso que esta última definição está intimamente relacionada com uma tradição costumeiramente aceita, que a ética foi construída a partir de uma cosmovisão judaico-cristã que constitui a modernidade ocidental. Isso porque definir a ética a partir de uma percepção normativa pressupõe que existe um padrão universal de comportamento acerca de como os seres humanos deveriam agir.
Assim chegamos a definição de Ética, que está totalmente comprometida com os valores e princípios universais ensinados pelas Escrituras Sagradas e na pessoa de Jesus Cristo e que foram estabelecidos a partir de uma idéia de verdade transcendente e de um Bem absoluto que norteia todas as noções de certo e errado no comportamento humano.
Cabe aqui também citar que a diferença entre as conceituações de Ética e Moral sempre foi um assunto de debates e controvérsias no estudo do comportamento humano. Vale destacar, que neste artigo, trabalharemos com os dois conceitos indistintamente, entendendo que eles se referem aos mesmos comportamentos em geral.
Conforme o conceito apresentado, queremos também destacar que a Ética, conforme tradicionalmente definida, a partir de pressupostos iluministas, vêm sofrendo nas últimas décadas uma transformação em suas bases. Assim como todo pensamento pós-moderno, a Ética tradicionalmente aceita vem sofrendo profundos ataques desde o final do séc. XVIII, sobretudo por causa da filosofia pós-moderna que avança a largos passos conquistando novos adeptos no meio acadêmico e na cultura em geral. Diversos pensadores vêm apresentando os alicerces deste novo cenário intelectual que investe fortemente contra os princípios e valores que constituem a mentalidade ocidental. Com isto, ideias fundamentais como a verdade absoluta e transcendente estão sendo questionados e substituídos por novos conceitos bem mais relativos. Diversos pensadores, principalmente depois de F. Nietzsche, têm investido fortemente para desfragmentar os conceitos balizares do pensamento moderno, cujo um de ser principais representantes foi o filósofo de Immanuel Kant.
Kant estabeleceu filosoficamente o fundamento de uma Ética baseada na razão humana. Seguindo o pressuposto de uma Ética Cristã transcendente e universal constituída pela cosmovisão cristã, Kant se referia ao modo racional de viver como “dever ser”. Para ele, a direção de uma moralidade universal caminhava para o que ele chamou de “imperativo categórico”. Para Kant, os comportamentos morais deveriam seguir os princípios que gostaríamos de ver todas as pessoas cumprindo. Esse imperativo da razão é que deveria guiar as ações das pessoas enquanto seres racionais, testando se eles deveriam ser universalizados. Sobre isto, nos esclarece Grenz:

Assim como o aspecto teórico, prossegue Kant, essa dimensão prática ou moral da existência humana é fundamentalmente racional. Ele estava convencido de que certos princípios racionais controlam todos os julgamentos morais válidos, exatamente como outros princípios racionais acham-se na base de todo conhecimento teórico edificado sobre o conhecimento[1].

Assim, a modernidade expressamente se fundamentava em pressupostos metafísicos comprometidos com a cosmovisão cristã que apelava para um Deus transcendente e absoluto.

2.    A Ética Cristã como verdade revelada

Segundo a revelação bíblica, Deus (Jesus) é a verdade que se apresentou e revelou sua vontade de modo proposicional ao inspirar pessoas escolhidas para esta finalidade. Deste modo, o Deus revelado é a base epistemológica que sustenta a Ética Cristã em particular e a Ética em geral. Isso não quer dizer que as Escrituras seja um livro de normas éticas para cada situação, mas, ela é suficiente e possui todas característica e premissas necessárias para a formatação de uma concepção de mundo que conduzirá a formação de uma Ética Cristã. A Ética Cristã parte da premissa do Deus revelado em Jesus Cristo sendo a única e absoluta verdade, o criador do universo e de todos os homens. Nele todos devem crer, obedecer e reconhecer como Deus que expressa sua vontade em princípios que se desdobram em valores éticos. Esta atitude é requisito indispensável para possibilidade da Ética Cristã, pois é somente pela revelação bíblica que se pode extrair conceitos a respeito do universo e da humanidade e deste modo diferenciar o certo do errado. Se não for desta forma, não haverá nenhuma referência para dar a significação final das palavras a fim de que possamos discernir e diferenciar o certo do errado, pois, de outro modo, estaremos obrigatoriamente partindo de algo impessoal e desconhecido. [2]É por este motivo que a Ética Cristã precisa necessariamente de um padrão normativo. Uma referência de autoridade precisa ser adotada como fundamento para a Ética. A Ética Cristã e a Ética em geral estão vinculadas a esse referencial absoluto, seja religioso, seja racional. Assim, todas as questões que envolvem a opção entre o certo e errado devem ser determinadas pelo caráter absoluto de Deus  [3]Para que a ética possa se sustentar, é necessário assegurá-la a partir de um ser absoluto e eterno, atemporal e além do mundo. Essa compreensão nos conduz para a ideia de um Deus perfeito em questão ética que seja fonte e origem da verdade moral que estará intrinsicamente relacionada com a Ética Cristã  [4].

3.    A desconstrução do conceito de verdade e os desafios para Ética

Desde o final do séc. XVIII, após o desfecho do iluminismo, pensadores tem se aplicado para superar o pensamento produzido pela modernidade. Deste tempo para cá, a sociedade entrou em um movimento de transformações intelectuais e culturais de proporções grandiosas. O pensamento pós-moderno tornou-se então uma tendência. Essa atitude intelectual, comprometida com uma série de expressões culturais, colocaram em cheque os ideais, princípios e valores que se achavam no centro da estrutura mental moderna. Como afirma Grenz:

Além disso, parece que estamos sofrendo uma transformação cultural mais ampla. Estamos deixando a era moderna, com sua base na busca de uma ver­dade supra-cultural e abrangente, que incluía a procura da ética universal única, para atravessar as águas desconhecidas do pós-modernismo[5]

Os pós-modernos acreditam que não apenas nossas crenças, particulares, mas também a própria concepção de verdade estão enraizadas na comunidade da qual participamos. Eles rechaçam a busca moderna da verdade universal, supra-cultural e eterna e dão valor a busca da verdade como expressão de uma comunidade humana particular. De acordo com os pós-modernos, a verdade consiste nas regras básicas que facilitam o bem estar pessoal na comunidade e o bem estar da comunidade como um todo.

Nesse sentido portanto, a verdade pós moderna tem a ver com a comunidade de que participa o indivíduo. Uma vez que são muitas as comunidades humanas, necessariamente serão muitas também as diferentes verdades (...). A consciência pós-moderna, portanto, implica um tipo radical de relativismo e pluralismo[6]

Pouco a pouco, o conceito de verdade transcendente e universal foi sendo desfragmentada e o que foi colocado em seu lugar foi a compreensão de uma verdade relativa ao contexto particular. Estes pensamentos afetaram diretamente a Ética em geral, conforme comumente definida, e a Ética Cristã em particular, que fundamenta-se claramente em preceitos e verdades universais e absolutas ensinados por Jesus Cristo.

Os pós modernos não estão também, necessariamente, preocupados em provar que estão “certos” e os outros “errados”. Para eles, as crenças são, em última análise, uma questão de contexto social e, portanto, é bem provável que cheguem a conclusão de que “O que é certo para nós, talvez não seja o que é certo para você” e “O que está errado em nosso contexto, talvez seja aceitável ou até mesmo preferível no seu”.[7]

Foi por este viés que todos os pós-modernos desde Nietzsche buscaram descaracterizar o conceito tradicional de verdade absoluta e transcendente e pôr em seu lugar o conceito de verdade relativa. Esta feita, não somente comprometeu a Ética Kantiana de pretensões universais, fundada na razão humana, como a Ética Cristã, fundada em princípios absolutos e universais divinos, encarnados em Jesus Cristo.
O ponto máximo do espírito amoral da pós modernidade expressou nas obras “Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro” e “Genealogia da Moral”, ambas de F Nietzsche, seu mais substancial desenvolvimento. Nestas obras, Nietzsche ataca o nascedouro da moral ocidental que se fundamenta em princípios absolutos sustentáculos da modernidade. Numa tonalidade ofensiva e radical, Nietzsche visa denunciar as concepções e valores cristãos impregnados na civilização europeia em que norteiam todos os padrões de comportamento e de decência.

A fé cristã é, desde seus primórdios, sacrifício, sacrifício de toda liberdade, de toda independência do espírito; ao mesmo tempo, escravização e escárnio de si mesmo, mutilação de si[8].

Ter acrescido o Novo Testamento, que é uma espécie de rococó do gosto sob todos os aspectos, ao Velho Testamento, formando assim a "Bíblia", o "livro" por excelência, é talvez a maior temeridade, o maior "pecado contra o espírito" que a Europa literária tem na consciência[9].

Nietszche queria demonstrar que os valores e princípios cristãos, veladamente sempre estiveram presentes nas construções filosóficas do Ocidente.

Passo a passo, fui descobrindo que até o presente, em toda grande filosofia se encontram enxertadas não apenas a confissão espiritual, mas suas sutis "memórias", tanto se assim o desejou seu autor quanto se não se apercebeu disso. Mesmo assim, observei que em toda filosofia as intenções morais (ou imorais) constituem a semente donde nasce a planta completa. Com efeito, se queremos explicar como nasceram realmente as afirmações metafísicas mais transcendentes de certos filósofos, seria conveniente perguntar-nos antes de tudo: A que moral querem conduzir-nos?[10]

Nietzsche também ataca Kant:

A hipocrisia rígida e virtuosa com que o velho Kant nos leva por todas as veredas de sua dialética para nos induzir a aceitar seu imperativo categórico, é um espetáculo que nos faz sentir o imenso prazer de descobrir as pequenas e maliciosas sutilezas dos velhos moralistas e dos pregadores[11]

Para Nietzsche, o homem superior (super homem) teria que ser amoral. A filosofia do futuro deveria ser amoral. Ele afirmava que a faculdade moral de Kant é injustificável[12] e impraticável. O claro objetivo de Nietzsche era desqualificar a fé cristã como portadora de valores e princípios fundamentais para a Ética em geral.

Nietzsche acusa os moralistas filosóficos de evitarem buscar a conclusão de que a moralidade, tal como o conhecimento intelectual, é simplesmente um costume local ou uma expressão de sentimentos duvidosos. Ele ataca esses pensadores, especialmente os teólogos cristãos, por afirmarem impropriamente que suas crenças racionais são racionais, universais e axiomáticas.[13]

Deste modo, conforme as reflexões desenvolvidas neste artigo, entendemos que a desconstrução e desfragmentação do conceito tradicional de verdade inviabiliza o projeto de uma Ética Cristã e consequentemente de uma Ética em geral. Não há como falar em Ética Cristã sem um padrão de referência absoluto e externo comprometido com os valores e princípios que estão intimamente ligados aos atributos divino claramente revelados nas Escrituras e nos ensinos de Jesus Cristo.

Rodrigo Walicoski Carvalho é mestrando em Teologia pela Faculdade Teológica Batista do Paraná no tema: O Reino de Deus como chave hermenêutica das teologias contemporâneas. Possui graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Batista do Paraná (2006). Cursou Filosofia na Universidade Federal do Paraná e é Pós Graduado na área de Educação a Distância. É autor de diversos livros na área da Teologia e da Filosofia. Atualmente é Diretor Pedagógico do INSTITUTO HOKMA. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Filosofia. É casado com Paula S. W. Walicoski Carvalho e pai de Ester S.W. Walicoski Carvalho






[1] GRENZ, Stanley. Pós Modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova 1997  p. 120.
[2] SCHAEFFER, Francis A. O Deus que se revela. São Paulo, Cultura Cristã, 2002 p. 62.
[3] SPROUL, R.C. Discípulos Hoje. São Paulo, Cultura Cristã, 1998 p. 221
[4] ORR, James. Concepción Cristiana de Dios y el Mundo. Terrassa, CLIE, 1992 p.139
[5] GRENZ, Stanley. A Busca da Moral. São Paulo: Vida 2006 p. 13.
[6] GRENZ, Stanley. Pós Modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova 1997   p. 33
[7] GRENZ, Stanley. Pós Modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova 1997   p. 34
[8] NIETZSCHE, Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Curitiba: Hemus S.A, 2001. p. 58
[9] NIETZSCHE, Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Curitiba: Hemus S.A, 2001. p. 64
[10] NIETZSCHE, Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Curitiba: Hemus S.A, 2001. p. 15
[11] NIETZSCHE, Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Curitiba: Hemus S.A, 2001. p. 14-15
[12] NIETZSCHE, Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Curitiba: Hemus S.A, 2001. p. 20
[13] GRENZ, Stanley. Pós Modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova 1997   p. 139



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


GEISLER, Norman L. Ética Cristã: Alternativas e Questões contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 1988.

GRENZ, Stanley. A Busca da Moral. São Paulo: Vida 2006.

GRENZ, Stanley. Pós Modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova 1997.

GUNDRY, Stanley, Editor. Deus mandou matar? 4 Pontos de vista sobre o genocídio cananeu. São Paulo: Vida, 2006.

HARE, John. Por que ser bom? São Paulo: Vida, 1988.

HENRY, Carl. Dicionário de Ética Cristã. Cultura Cristã, São Paulo, 2007.

NIETZSCHE, Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Curitiba: Hemus S.A, 2001.

ORR, James. Concepción Cristiana de Dios y el Mundo. Terrassa, CLIE, 1992

SCHAEFFER, Francis A. O Deus que se revela. São Paulo, Cultura Cristã, 2002

SPROUL, R.C. Discípulos Hoje. São Paulo, Cultura Cristã, 1998

STOTT, R. W. Jonh. A contracultura cristã: A mensagem do sermão do monte. ABU, São Paulo, 1981.

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